quarta-feira, 16 de julho de 2008

Não me leve a mal, me leve a sério

O tempo nos rói a carne aos poucos. Mas não pára. O roque-roque-roque está lá, constante e inerente à nossa condição de ser vivo. A lição dos tempos de escola não cessa de ecoar: nascer, crescer, desenvolver-se, amadurecer, reproduzir-se (ou não), envelhecer e morrer.

Artistas, essa gente que varia em outra freqüência, estão debaixo do mesmo guarda-chuva, mas, no entanto, têm sua obra para ser admirada depois que o processo se encerra. Quanto mais prolífico é o sujeito, mais há para ser visto, lido, ouvido, absorvido. Em outro artigo nesse mesmo Calo na Orelha já foi desenvolvida uma teoria a respeito do caráter humilhante da extensa obra de Chico Buarque. Aqui, no entanto, estaremos focados na última obra recheada de inéditas do músico.




Carioca é um disco de 2006 que traz um Chico encarando o ciclo natural e a evolução do homem e do artista que é. Famoso, dentre outras coisas, por sua capacidade de expressar o “eu” feminino com a exatidão e profundidade que poucos alcançaram dentro da música popular brasileira, encontramos nesse Carioca um artista certo da sua idade e disposto a mostrá-la na sua essência, sem entremear suas letras com saudosismos ou dramas baratos, nem esconder de seus arranjos que os tempos são outros. Tal como foi escrito, arranjado e gravado, vemos no disco de Chico uma sinceridade pura (assumindo que cada um enxerga as coisas e as interpreta a seu modo).

Chico tem 64 anos e canta e escreve nesse disco como alguém que tem, vive, assume e, não há dúvidas, gosta de ter 64 anos. Versos e mais versos deixam isso claro durante toda a execução do álbum quando se assume essa linha de raciocínio, mas a idéia se firma em Bolero Blues, quando o sambista canta “quando eu ainda estava moço, algum pressentimento me trazia volta e meia por aqui/Talvez à espera da garota que naquele tempo andava longe, muito longe de existir”.




Essa impressão é reforçada e transmite a atualização de Chico perante os assuntos do mundo já na abertura do álbum, em “O Subúrbio”, em que Chico lista bairros do subúrbio carioca e assume que não apenas o samba, embora este não esteja esquecido, mas que outros ritmos e expressões já traduzem – concomitantemente – os anseios e prazeres daqueles que lá vivem. “Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção/Traz as cabrochas e a roda de samba/Dança teu funk, o rock, forró, pagode, reggae/Teu hip-hop/Fala na língua do rap” é, antes de falar apenas do subúrbio, como limita a letra, uma declaração de que o “mesmo com todo o rock” não precisa mais ser tão xiita, se é que um dia foi…

Para além disso, do frescor das temáticas das letras (que falam em maconha, peitinho, bundinhas, parking, shopping center…), e de alguns arranjos trazendo pequenos e curiosos riffs de guitarra, temos um Chico mantendo a tradição do bom uso da língua e do seu vocabulário e utilizando ainda o violão amigo, o pandeiro, o cavaco e orquestrações (às vezes exageradas).

Carioca é um disco que faz pensar na seguinte situação: um homem, que viveu sob holofotes durante a vida inteira, que se dedicou à poesia, seja por fardo do destino, seja por exercício do ser humilhador, que dissecou os sentimentos e carnes da mulher com a aprovação dela, chega à maturidade com elegância e assumindo outra perspectiva, dando vazão à veia artística com muito mais sinceridade do que se firmasse seus pés num tradicionalismo desnecessário. É como ele mesmo fala em Leve: “Me leve a sério/Passou este verão/Outros passarão/Eu passo”.

Na mesma canção, dedilhada ao violão e com uma marimba ao fundo, ele pede “não se esqueça depressa de mim, sim?”, o que reforça o amor como bicho traiçoeiro, em que época e idade que seja.




Chico se renova em discurso e agrega temas às suas expressões mais clássicas, metendo um sample de sua voz, as já citadas guitarras, as palavras pouco usuais no seu discurso de rapaz inteligente e maroto, sem nunca deixar de falar do que ele bem sabe, que são os amores, as pessoas, as gentes, as relações. Chico encontra um jeito de costurar admiração, saudade, tesão e ironia num disco que não é de seus melhores (a produção lapidada não consegue esconder momentos em que sua voz fraqueja – não pela idade, mas sim pelas suas limitações como cantor), mas que não faz feio, e passa longe disso, a nada que ele já tenha feito.

Talvez o maior préstimo (provavelmente inconsciente e arbitrário) desse álbum é mostrar que envelhecer quase nunca é ruim, se se soube aproveitar todo o processo que o antecede. Chico demonstra que o fez e não deixa dúvidas sobre o quanto ainda quer aproveitar.




Você pode encontrar esse disco aqui.

Este artigo foi publicado originalmente no Amálgama.

2 Comentários:

Blogger Páua disse...

Na minha cabeça Chico nunca vai envelhecer, vai ter sempre esse charme que eu me recuso a entender, e com músicas que eu entendo, mas as vezes queria não entender.
Adorei o texto e o disco. :D

7 de agosto de 2008 às 09:34  
Blogger Larissa Simioni disse...

Eu nao te levo a serio...

Eis, uma pessoa que nunca escrevinha!!!
Tu es iluminado!!!

Jader, o Augusto

Beijos grande

11 de agosto de 2008 às 21:46  

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