quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Da difícil arte de ser um humilhador...
Por Jader Pires

Deus lhe pague.




Em sua difícil profissão de humilhar as pessoas (não, ele não é letrista como diz, não é músico, não é escritor, dramaturgo, interprete, nada disso), Chico Buarque começa me humilhando fazendo com que esse texto seja um apanhado de diversas divagações clichês. Todas as letras e arranjos das músicas do rebento mais versátil do Rio de Janeiro já foram analisados, estudados, decorados, alterados, copiados e regravados e deixou cabeças já pelas tabelas.

Mais que um ícone da música brasileira, Chico Buarque é uma pessoa comum que acorda cedo, coça os olhos pra tentar arrancar a areia imaginária, pensa em dormir um pouco mais, levanta com corpo mole, toma café pensando em mais de dez coisas ao mesmo tempo e não dá foco em nenhuma delas e bate ponto pra começar o trabalho. O cargo? – Humilhador.

O homem permeou por vários nichos de pensamentos musicais quando se trata de letras. Vai do mais simples, passa por ótimas sacadas de jogo de palavras ou de frases e vai até o rebuscar ideal pra uma canção. Ele consegue descrever o cotidiano com maestria se igualando ao maior ícone no assunto, o poeta Manuel Bandeira. Consegue ser direto e sucinto quando o assunto é a rotina de algum mortal qualquer que mora do lado de baixo do equador, como nas canções A Rita (que retrata a história de um Chico qualquer, abandonado pela Rita que levou 20 anos, coração e calou um violão), Até o Fim (que descreve a vida maldita decretada por um anjo safado), Cotidiano (que conta as peripécias do dia-a-dia de um casal tão comum no Brasil quanto o sobrenome Silva ou o nome Chico) ou O Meu Guri (que conta a trajetória nada gloriosa de um filho que toda mãe faz questão de não ver, menos a dele, que não vê nada errado mesmo).

O nostálgico Chico nos ambienta no mundo dos malandros, enchendo cabeças com aquela idéia romântica dos matutos de terno branco, chapéu panamá e navalha no bolso, aprontando poucas e boas pra se dar bem e viver no sossego do morro. Tenta homenageá-los na clássica Homenagem Ao Malandro (mas perde a viagem - ou não!?), cantarola A Volta do Malandro (entregando das próprias mãos o título de “barão da ralé”, assim mesmo, sem letra maiúscula, com todas as pompas que um cabaré pode oferecer), fica injuriado com as malandragens do dito cujo e é bem claro na ordem: Vai Trabalhar, Vagabundo!

Até aqui ele ainda mantém um certo cuidado com nossos egos, mas a coisa está pra ficar mais complicada.




Porque Chico Buarque nos humilha? – Eu não sei. Provavelmente ele não saiba também. É provável que, se conseguirmos personificar o destino, ele também nos olhe com cara de curioso se perguntando “como será que ele faz isso!?”.

O trovador carioca é dotado de um lirismo sutil e muito, mas muito eficaz. Em Construção, ele tem a sacada de escrever uma letra com todas as últimas palavras sendo proparoxítonas (última, única, tímido, máquina, sólidas, mágico, lágrimas, sábado, príncipe, náufrago, música, bêbado, pássaro, flácido, público e tráfego) e alternando-as a cada repetição da rotina de um pobre trabalhador da construção civil nacional e deixando seu percurso e seus atos mais e mais caóticos e sem sentido, até que o pobre homem não suporta mais tamanha desgraça e morre na contra-mão atrapalhando tráfegos, públicos e sábados rádios a fora. A irônica Chame O Ladrão é o meio termo, sendo simples na estrutura, mas com um insight muito interessante de inverter os papéis, pedindo socorro ao ladrão na hora do desespero. Copo Vazio, Bom Conselho e Deus lhe Pague também são exemplos de letras bem construídas por Chico, aflorado por um lado mais complexo de divagações e mais rebuscado nas brincadeiras com a língua portuguesa. Em Paratodos, Chico agradece sua vida e seus amigos com uma canção toda composta em redondilhas, citando companheiros na música, nas viagens (físicas, intelectuais e sociais) e declara sua devoção ao Maestro Soberano, Antônio Brasileiro (tudo assim mesmo, com letras maiúsculas, com todas as pompas que Tom Jobim poderia receber).

Na verdade a devoção é recíproca. Chico nos humilha porque ele é amigo e querido por todos aqueles artistas que viraram lendas do samba, da bossa-nova, da tal de MPB, compositores, interpretes, instrumentistas e arranjadores. Além de Jobim, Chico tem a admiração e parceria de nomes como Baden Powell, Vinicius de Moraes, Milton Nascimento (em sua melhor fase), Toquinho, Caetano Veloso...

... Elis Regina, Nara Leão, Gal Costa, Bethânia. Claro que Chico tinha também quis compor músicas que são notadas pelo “eu” feminino e expor pontos de vista a partir do olhar das mulheres e entregar muitas dessas letras para as divas da música popular brasileira (canções essas que se tornaram grandes clássicos, como a interpretação de Elis para Atrás da Porta, que chegou ao limite de arrancar lágrimas intensas da cantora em uma gravação feita no Circo Voador na década de 80).




Chico humilha em sambas descendentes de Noel Rosa, cultivados no berço do nosso querido Cartola, a Mangueira. Músicas como Apesar De Você, Deixa A Menina, Feijoada Completa, Morena De Angola e Meu Caro Amigo são exemplos mais que contundentes da competência que Chico tem para criar sambas dignos de serem dançados com furor ou pra serem escutados na base da cachaça e de cerveja estupidamente gelada com um “petisquinho”. Chico humilha escrevendo peças de teatro (como Roda Viva, Gota D’água, Ópera do Malandro e O Grande Circo Místico, que rendeu um dos álbuns mais lindos de toda a música brasileira) que vagam entre as mais interessantes, controversas (para suas épocas) e cultuadas de nossa pequena história teatral. Chico humilha porque brinca de escrever livros como Estorvo (1991), Benjamim (1995) – que foi adaptado para o cinema em 2003, ano em que Chico resolveu humilhar novamente escrevendo o romance Budapeste (vencedor do Prêmio Jabuti de 2004), um livro que não se consegue ler em mais de dois dias, e que é intrigante até na capa (que depois de lido o livro, ela fica mais interessante ainda).

E tudo isso, tudo isso ele faz com a maior timidez que um homem pode ter! Elis ficou irritada quando o conheceu devido a sua timidez e desistiu de gravar com ele. Em um dos dvds que foram lançados aos kilos sobre ele nos últimos tempos, uma cena que mostra um Chico totalmente acuado, no corredor que dá acesso ao palco, tentando decidir se sobe para o bis ou não, enquanto todo gritavam “vai lá...vai lá” e ele argumentava pacificamente “mas será que eu vou...será que tenho que ir mesmo?”. Em diversas entrevistas ele disse que prefere os ensaios aos shows por causa da liberdade e da falta de vergonha. Chico faz tudo o que faz com uma tranqüilidade e com um sabor único.

Como uma de suas personagens musicais, Chico Buarque termina sua tarde batendo novamente o cartão, pega uma das três conduções lotadas e salta perto de casa, sentando no bar pra uma cerveja com os amigos, discutindo futebol, mulheres, samba e os percalços de ser um humilhador brasileiro.




Sambe com Chico Buarque e sua discografia aqui!

15 Comentários:

Blogger Alícia Melo disse...

é verdade. o Chico sabe humilhar como poucos, e nos mais variados aspectos possíveis.
=*

21 de fevereiro de 2008 às 00:55  
Anonymous Anônimo disse...

o Chico é foda!

e mais foda ainda é esse blog que não envia meus comentarios.
tinha escrito algo legal mas apagou e esqueci o que era. ;(

21 de fevereiro de 2008 às 00:57  
Blogger Unknown disse...

Eu te amo Eddie Vedder Buarque de Holanda.

Chico: Humilhador profissional ou profissional humilhador?

21 de fevereiro de 2008 às 11:32  
Blogger J. disse...

a psicologia reversa parece ter dado certo e teu poder de síntese me surpreende.

21 de fevereiro de 2008 às 11:55  
Anonymous Anônimo disse...

Descreveu bem a humilhação! hehe.
Vou passar esse texto para meus amigos humilhados com os devidos créditos do seu texto!
Vlw.

21 de fevereiro de 2008 às 17:43  
Anonymous Anônimo disse...

Tenho um amigo que diz que, toda vez que pensa em escrever um livro, lembra do William Faulkner. E simplesmente desiste, diante da genialidade do norte-americano. Se eu escrevesse música, Chico Buarque produziria esse efeito em mim.
Mas como nao escrevo música, vou seguindo em frente. E ao invés de sentir-me um brasileiro humilhado, sinto-me simplesmente encantado. Pela genialidade, pela revelaçao de mim e do Brasil em cada letra/música de Chico.
Mande ver, Pedro.

21 de fevereiro de 2008 às 21:12  
Blogger Jader Pires disse...

Editorial: precisamos assinar nossas matérias em cima dos textos URGENTEMENTE.

Ass: Jader Pires.

21 de fevereiro de 2008 às 21:23  
Anonymous Anônimo disse...

Recriado na arte do picadeiro, assim falo sobre Chico...
Uma torre de marfim bela e muitas vezes inalcançável da difícil Arte de ser um Humilhador...

Ass: Fabi

21 de fevereiro de 2008 às 23:43  
Blogger Cacau disse...

Este comentário foi removido pelo autor.

22 de fevereiro de 2008 às 13:56  
Blogger Cacau disse...

O neto do Aurélio, Filho do historiador Sérgio e irmão da grande cantora Miúcha,Chico humilha por esses e outros aspectos. Sua humildade e timidez dão o golpe final no nosso ego. Ele não brinca só com as palavras, mas também com as notas e tudo isso ao mesmo tempo =O (como em "Construção", nota-se que ao decorrer da música ela acelera, saindo da bossa nova mais lenta para um samba e isso está totalmente ligado à letra.), resultando em algo grandioso, porém simples: perfeito! Eu poderia falar por horas sobre a arte do Chico e ainda não conseguiria descrever o significado que tudo isso tem para mim...

22 de fevereiro de 2008 às 14:11  
Blogger Cacau disse...

Então, que ele continue me humilhando. Ele pode... ¬¬'

22 de fevereiro de 2008 às 14:13  
Blogger Páua disse...

Só chico humilha.
eu costumava dizer: só chico salva. ;D

28 de fevereiro de 2008 às 08:57  
Anonymous Anônimo disse...

caralho2! .P

2 de março de 2008 às 16:42  
Anonymous Anônimo disse...

Só Chico humilha; só Chico salva [2]
Como Chico nesse mundo, não existirá ninguém... Pobre daquele que não conhece a deliciosa sensação que é ser humilhado por Chico! Sim, porque ele pode... E DEVE fazer isso sempre... Jader querido, adoro suas matérias! :)

21 de março de 2008 às 21:03  
Blogger Juliana Freitas disse...

Bom demais seu texto... E o Chico? Que nos humilhe, bem humilhadinho, cada vez mais...

11 de julho de 2008 às 22:52  

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