quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Eu e o Blues do Demônio.
Por Jader Pires
As lendas podem vir de tradições populares, de eventos históricos cuja autenticidade não se pode provar, de mentes fantásticas e/ou irônicas. Provavelmente nunca saberemos a verdade de nenhuma delas e é isso o que as tornam tão sedutoras e especiais.

Do folclore nacional (saci, curupira, mula-sem-cabeça, caipora) aos boatos da nova era que permeiam nossa imaginação e aguçam nossa curiosidade. O hambúrguer do Mc Donalds é mesmo feito de minhoca? A Coca-Cola realmente corrói os dentes e desentope pia? Os elefantes temem os ratos pelo simples fato de os pequenos roedores adentrarem em suas trombas? O vírus da AIDS foi mesmo criado em laboratório? As pegadinhas do João Cleber são grandes farsas (dentre uma infinidade) da televisão brasileira?

Na música a coisa não é nada diferente. Elvis não morreu e vive numa ilha junto com Tupac Shakur. David Bowie dormiu com Mick Jagger enquanto Keith Richards cheirava as cinzas de seu pai. Michael Jackson não tem nariz e quem morreu mesmo foi o Paul MacCartney. Marilyn Manson arrancou duas costelas pra fazer sexo oral em si mesmo de tanto ouvir que ele na verdade é o Paul Pfifer do seriado Anos Incríveis. Lucy In The Sky with Diamonds tem as iniciais que compõe a sigla LSD. Enfim, elas existem e continuam a se reproduzir e a se distorcer a esmo. Mas de todas as lendas, de todo o universo musical, uma se destaca.






Robert Johnson é um dos nomes mais cultuados do Blues. O impacto que esse homem tem na história do Blues é tão potente quanto nomes consagrados como Muddy Waters, B.B. King ou John Lee Hooker. Seu jeito inovador (para a época) de tocar é tão interessante quanto as lendas que cercam sua breve vida que foi encerrada aos 27 anos (a data exata é incerta), iniciando mais uma lenda que seria a da maldição dos 27 (só pra reforçar, Hendrix, Joplin, Morrison, Cobain. Todos exemplos de mortos aos 27 anos).

Seu nome verdadeiro é Robert Leroy Johnson e como haveria de ser, nasceu e cresceu no Mississippi (um dos berços do Blues, juntamente com Louisiana, Geórgia e Alabama). Reza a lenda que Johnson adquiriu incrível talento para tocar vendendo sua alma ao diabo perto da meia-noite, numa encruzilhada da rodovia 61 com a 49, levando consigo uma garrafa pela metade de whisky e sua Dobro 1927 californiana com as cordas tão velhas que abria cortes em seus dedos longos e finos. Logo após o momento Faustiano firmado com o demônio, Robert Johnson viria compor o que para muitos são os “maiores blues de todos os tempos”. A influência de Johnson é tanta que nomes como Muddy Waters, todo o Blues elétrico de Chicago dos anos dourados de 50, Eric Clapton, Rolling Stones e White Stripes (que gravou a música Stop Breaking Down em seu álbum de estréia) se declaram fãs incondicionais de seu trabalho.






Tanta importância pra pouco registro. O que se sabe da carreira de Johnson estão nas 42 faixas gravadas em duas sessões feitas em 1936 que lhe renderam 29 canções que podem até espantar os mais desavisados devido à qualidade (obviamente estamos falando de musicas gravadas no começo do século). Mas a importância e a criatividade são tão anormais que, mais de 50 anos depois, o endiabrado Robert Johnson ganhou um prêmio Grammy e um disco de ouro. Em 1990 a gravadora Columbia Records lançou uma série de cds intitulada Roots n' Blues Series que continham todas as músicas de Johnson e, o que era uma estimativa de vendas de 20.000 cópias, renderam mais de 500.000 cópias espalhadas pelo mundo (sim, vou escrever por extenso: quinhentas mil cópias).

Sua figura é tão mítica quanto sua morte. Com causa não definida, mas com muitas especulações, dizem os mais antigos que Robert morreu rastejando-se de quatro em um corredor de hotel, uivando feito uma besta. Seria o fim do contrato com o...You Know Who? (muitas de suas músicas citavam o diabo, o inferno e a luta do bem contra o mal).





Lendas à parte, o que fica para os dias de hoje é a música de imenso magnetismo, carregadas de riffs e levadas por uma voz tentadora como o próprio inferno. Robert Johnson deixou seu legado no Blues e fez história ao contribuir fortemente com a padronização da estrutura consagrada dos 12 compassos. Uma relíquia que transcende os fatos soturnos e ilumina a estrada do Blues.




Confira a guitarra endiabrada de Robert Johnson aqui e acolá!

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Da difícil arte de ser um humilhador...
Por Jader Pires

Deus lhe pague.




Em sua difícil profissão de humilhar as pessoas (não, ele não é letrista como diz, não é músico, não é escritor, dramaturgo, interprete, nada disso), Chico Buarque começa me humilhando fazendo com que esse texto seja um apanhado de diversas divagações clichês. Todas as letras e arranjos das músicas do rebento mais versátil do Rio de Janeiro já foram analisados, estudados, decorados, alterados, copiados e regravados e deixou cabeças já pelas tabelas.

Mais que um ícone da música brasileira, Chico Buarque é uma pessoa comum que acorda cedo, coça os olhos pra tentar arrancar a areia imaginária, pensa em dormir um pouco mais, levanta com corpo mole, toma café pensando em mais de dez coisas ao mesmo tempo e não dá foco em nenhuma delas e bate ponto pra começar o trabalho. O cargo? – Humilhador.

O homem permeou por vários nichos de pensamentos musicais quando se trata de letras. Vai do mais simples, passa por ótimas sacadas de jogo de palavras ou de frases e vai até o rebuscar ideal pra uma canção. Ele consegue descrever o cotidiano com maestria se igualando ao maior ícone no assunto, o poeta Manuel Bandeira. Consegue ser direto e sucinto quando o assunto é a rotina de algum mortal qualquer que mora do lado de baixo do equador, como nas canções A Rita (que retrata a história de um Chico qualquer, abandonado pela Rita que levou 20 anos, coração e calou um violão), Até o Fim (que descreve a vida maldita decretada por um anjo safado), Cotidiano (que conta as peripécias do dia-a-dia de um casal tão comum no Brasil quanto o sobrenome Silva ou o nome Chico) ou O Meu Guri (que conta a trajetória nada gloriosa de um filho que toda mãe faz questão de não ver, menos a dele, que não vê nada errado mesmo).

O nostálgico Chico nos ambienta no mundo dos malandros, enchendo cabeças com aquela idéia romântica dos matutos de terno branco, chapéu panamá e navalha no bolso, aprontando poucas e boas pra se dar bem e viver no sossego do morro. Tenta homenageá-los na clássica Homenagem Ao Malandro (mas perde a viagem - ou não!?), cantarola A Volta do Malandro (entregando das próprias mãos o título de “barão da ralé”, assim mesmo, sem letra maiúscula, com todas as pompas que um cabaré pode oferecer), fica injuriado com as malandragens do dito cujo e é bem claro na ordem: Vai Trabalhar, Vagabundo!

Até aqui ele ainda mantém um certo cuidado com nossos egos, mas a coisa está pra ficar mais complicada.




Porque Chico Buarque nos humilha? – Eu não sei. Provavelmente ele não saiba também. É provável que, se conseguirmos personificar o destino, ele também nos olhe com cara de curioso se perguntando “como será que ele faz isso!?”.

O trovador carioca é dotado de um lirismo sutil e muito, mas muito eficaz. Em Construção, ele tem a sacada de escrever uma letra com todas as últimas palavras sendo proparoxítonas (última, única, tímido, máquina, sólidas, mágico, lágrimas, sábado, príncipe, náufrago, música, bêbado, pássaro, flácido, público e tráfego) e alternando-as a cada repetição da rotina de um pobre trabalhador da construção civil nacional e deixando seu percurso e seus atos mais e mais caóticos e sem sentido, até que o pobre homem não suporta mais tamanha desgraça e morre na contra-mão atrapalhando tráfegos, públicos e sábados rádios a fora. A irônica Chame O Ladrão é o meio termo, sendo simples na estrutura, mas com um insight muito interessante de inverter os papéis, pedindo socorro ao ladrão na hora do desespero. Copo Vazio, Bom Conselho e Deus lhe Pague também são exemplos de letras bem construídas por Chico, aflorado por um lado mais complexo de divagações e mais rebuscado nas brincadeiras com a língua portuguesa. Em Paratodos, Chico agradece sua vida e seus amigos com uma canção toda composta em redondilhas, citando companheiros na música, nas viagens (físicas, intelectuais e sociais) e declara sua devoção ao Maestro Soberano, Antônio Brasileiro (tudo assim mesmo, com letras maiúsculas, com todas as pompas que Tom Jobim poderia receber).

Na verdade a devoção é recíproca. Chico nos humilha porque ele é amigo e querido por todos aqueles artistas que viraram lendas do samba, da bossa-nova, da tal de MPB, compositores, interpretes, instrumentistas e arranjadores. Além de Jobim, Chico tem a admiração e parceria de nomes como Baden Powell, Vinicius de Moraes, Milton Nascimento (em sua melhor fase), Toquinho, Caetano Veloso...

... Elis Regina, Nara Leão, Gal Costa, Bethânia. Claro que Chico tinha também quis compor músicas que são notadas pelo “eu” feminino e expor pontos de vista a partir do olhar das mulheres e entregar muitas dessas letras para as divas da música popular brasileira (canções essas que se tornaram grandes clássicos, como a interpretação de Elis para Atrás da Porta, que chegou ao limite de arrancar lágrimas intensas da cantora em uma gravação feita no Circo Voador na década de 80).




Chico humilha em sambas descendentes de Noel Rosa, cultivados no berço do nosso querido Cartola, a Mangueira. Músicas como Apesar De Você, Deixa A Menina, Feijoada Completa, Morena De Angola e Meu Caro Amigo são exemplos mais que contundentes da competência que Chico tem para criar sambas dignos de serem dançados com furor ou pra serem escutados na base da cachaça e de cerveja estupidamente gelada com um “petisquinho”. Chico humilha escrevendo peças de teatro (como Roda Viva, Gota D’água, Ópera do Malandro e O Grande Circo Místico, que rendeu um dos álbuns mais lindos de toda a música brasileira) que vagam entre as mais interessantes, controversas (para suas épocas) e cultuadas de nossa pequena história teatral. Chico humilha porque brinca de escrever livros como Estorvo (1991), Benjamim (1995) – que foi adaptado para o cinema em 2003, ano em que Chico resolveu humilhar novamente escrevendo o romance Budapeste (vencedor do Prêmio Jabuti de 2004), um livro que não se consegue ler em mais de dois dias, e que é intrigante até na capa (que depois de lido o livro, ela fica mais interessante ainda).

E tudo isso, tudo isso ele faz com a maior timidez que um homem pode ter! Elis ficou irritada quando o conheceu devido a sua timidez e desistiu de gravar com ele. Em um dos dvds que foram lançados aos kilos sobre ele nos últimos tempos, uma cena que mostra um Chico totalmente acuado, no corredor que dá acesso ao palco, tentando decidir se sobe para o bis ou não, enquanto todo gritavam “vai lá...vai lá” e ele argumentava pacificamente “mas será que eu vou...será que tenho que ir mesmo?”. Em diversas entrevistas ele disse que prefere os ensaios aos shows por causa da liberdade e da falta de vergonha. Chico faz tudo o que faz com uma tranqüilidade e com um sabor único.

Como uma de suas personagens musicais, Chico Buarque termina sua tarde batendo novamente o cartão, pega uma das três conduções lotadas e salta perto de casa, sentando no bar pra uma cerveja com os amigos, discutindo futebol, mulheres, samba e os percalços de ser um humilhador brasileiro.




Sambe com Chico Buarque e sua discografia aqui!

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O retorno para si mesma
[para o canto mais obscuro da alma]




Trinta e três minutos e alguns quebrados de segundos. Esse é o tempo que dura nosso breve e marcante passeio pelo espírito tortuoso que Polly Jean Harvey (PJ Harvey) trouxe a tona no seu último trabalho, White Chalk (2007). Tudo bem que ela nunca foi lá um poço de músicas “coloridas”, sempre colocando um pouco de suas dores hiper-femininas nas composições [e atitudes]. Isto sem soar uma mulher melosa, falsamente orgulhosa e sexualizada, mas sendo sincera e forte, algo triunfante diante de tantas garotinhas-de-20-e-poucos-anos que ainda escrevem como curicas de 14 anos.

O que mais atormenta nesse último trabalho é que PJ Harvey foi mais além que cantar simples fatos cotidianos. Jogando sua guitarra na fogueira, ela passa a assumir um piano [que aprendeu a tocar especialmente para este álbum], para então se integrar a instrumentos de percussão e corda acústicos. Despojando-se completamente de suas habituais vestes musicais para poder ir, e mostrar, o mais fundo de sua alma atormentada.

Vagando por caminhos que muitas vezes lhe remetem a infância e demônios internos, lembranças que vagam pelo seu mais querido lado sombrio de sua personalidade. Tudo numa narrativa suave de sua voz, num tom [belo] que raramente se exaltada, o que termina por cobrir toda a melancolia pesada e pessoal que atravessa White Chalk.

Em The Devil [umas das musicas mais fortes], PJ Harvey nos alerta do monstro que a consume. Com Dear Darkness ela mostra toda sua intimidade e carinho pelo seu lado obscuro. Harvey conversa sobre suas dores com sua mãe e sua avó em Grow Grow Grow [uma bela canção onde ela solta sua voz como nunca] e To Talk To You, respectivamente. E The Piano é aquela música que nunca se deve ouvir em momentos alegres, por ser tão bela e angustiante. São canções intimistas que passeiam pelos ouvidos, imperceptíveis e complicadas de descrever sonoramente por serem tão simples. Mas que deixam rastro para quem as escuta, uma sensação cortante de melancolia.




Apesar de todas qualidades, White Chalk talvez não chegue a ser um clássico como Rid of Me (1993), e deve perturbar a audição de muitos fãs antigos de PJ Harvey. Mas ele é uma pequena pérola negra da cantora, um despretensioso avanço sonoro que lhe rendeu um grande além do seu penúltimo trabalho, Uh Huh Her (2004), que passou despercebido por mostrar um som mais-do-mesmo.

E talvez todo esse passeio perturbador pela alma de PJ Harvey tenha um outro lado positivo. Seja lá qual foi o resultado dessa cartase, a cantora já está de volta ao estúdio para gravar outro trabalho, com lançamento previsto em 2008 ainda. Para quem andava meio sumida, esta reconciliação com as trevas parece ter lhe trazido à luz.

Obs.: Ironicamente, considero este álbum o par perfeito de outro trabalho, também permeado pelo piano suave e por marcas melancolicamente pessoais: The Boatman’s Call (1997), do Nick Cave, ex-namorado de PJ Harvey. O disco foi feito durante a depressão do cantor após o fim do relacionamento dos dois. Ou seja, pro bem de seu bom humor, nunca ouça estes álbuns consecutivamente.


Encontre o álbum aqui ou ali.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Da difícil arte de viver na cidade

De todas as bandas que apareceram depois do ano 2000, a única que tem meu respeito incondicional e admiração deslavada é o The Strokes. Chegava a ser complicado pensar nos discos do grupo de maneira crítica, embora me recorde que quando saiu o “First Impressions of Earth” me toquei que estava a salvo da falta de criticidade.

Achei o disco o pior do grupo, mais frágil e com menos potencial hit maker que os anteriores. Achei inclusive que a perfeição do primeiro disco, o “Is This It” estaria para sempre num limbo, sozinha e isolada. Depois o disco cresceu e amadureceu no meu ouvido, e foi simples perceber que assim como o “Be Here Now”, do Oasis, é um disco de transição, o “First...” representa uma experimentação com novas propostas dentro do Strokes.




E isso fica ainda mais claro quando escutamos o disco “Yours to Keep”, solo de Albert Hammond, Jr., guitarrista do Strokes. Ele prega uma peça em todo mundo, por duas razões maravilhosas. Vamos a elas:

1 – Ele praticamente não retoma a estética “Is This It”, mostrando independência no processo criativo;
2 – O disco não segue o novo padrão Strokes ainda não definido do “First...”.

Essas duas razões são suficientes para “justificar” o respiro criativo de Hammond, Jr. mesmo dentro de uma banda. Os boatos de que o disco solo do guitarrista seria um sinal de abandono grupo perdem força com a qualidade do material. O cara tem bala na agulha suficiente para cobrir carreira solo e banda que já planeja o quarto disco.

Mas bom mesmo é superar toda e qualquer interpretação e argumentação e se deparar com a feliz realidade de que o disco solo de Hammond, Jr. é absurdamente inspirado. Não é absurdo hypado, não é empolgação injustificada. Junto com Josh Lattanzi no baixo e Matt Romano na bateria, Albert Hammond, Jr. bate um bolão como compositor e vocalista .




As 10 músicas do disco apresentam climas e ambientações diferentes. Umas felizes, com vozes tristonhas, outras com escalas menores na melodia [levando ao sentimento de “tristeza”] e letras dispostas... Texturas das mais diversas, teclados, pianos, harmônicas, guitarras...

Mesmo sendo um fumante inveterado, Albert canta divinamente. Aliás, a voz do guitarrista é de um agudo agradável e que amplia a carga emotiva das canções. A banda é competente, baixo e bateria não inovam, mas passam longe de decepcionar. Junto disso, temos Julian Casablancas e Sean Lennon participando como instrumentistas do disco. Um apoio peculiar [no caso de Julian] e tarimbado [no caso de Sean].

Tanta empolgação é pertinente, já que o trabalho é vistoso, jovial e empolgante. Não há por que resistir a “Yours to Keep” por manha, birra ou coisa parecida. Escute e se encante. Ou não se encante. Só não deixe de escutar essas boas músicas.




E longe de perder o fôlego, Albert Hammond, Jr. já prepara um segundo disco solo, que deve sair em meados de 2008. Se seguir a proposta e tiver o encanto natural deste, já vai nascer clássico.

Parafraseando o moço, “se você não estiver procurando por um quarto disco do Strokes, esse vai ser um álbum para se apaixonar”. Concordo plenamente.




esse disco está disponível aqui!